28 de outubro de 2009

Querência

Era fim de tarde já. A luz do céu naquela misturinha de azul e carmim, parecendo que Deus tava preparando a tinta da aquarela, misturando as cores, misturando os tons.
E era Tom Jobim cantando naquele elepê que nunca cansava de girar... e ela realmente não estava vendo o tempo passar. Perdeu a noção das horas. Perdeu a razão das coisas.

Apenas sentou naquela poltrona onde antes havia sentando seu pai, e antes seu avô. Sentada olhou para fora, pela janela, e viu a vida, viu a tela. Viu de onde veio e até onde chegou.

Esqueceu das horas. O dia virou noite. A noite virou dia. A menina virou moça. A moça virou mulher. Mas a mulher ainda era menina. A menina que às vezes queria chorar. Queria voltar pra casa. Queria o colo da mãe. Queria as rodinhas da bicicleta, para garantir que ela não ia cair.

Mas não lhe deram rodinhas de bicicleta.

E quando ela percebeu que não mais as teria; que tem coisas que simplesmente não podem ser nossas, porque não devem ser nossas. E que sem essas, a gente tem que só levantar e seguir a vida. Sem rodinhas. Porque não dá pra simplesmente largar a bicicleta. Não depois de já ter andado até aqui.

E quando se deu conta da falta de rodinhas ela fechou os olhos e voltou a ouvir Jobim. O disco que não parava de tocar. E a poesia perfeita, a rima perfeita... o dueto com Chico foi tomando conta de tudo, entrando por cada fresta, por cada poro, e a métrica foi entrando em compasso com a respiração. E era tudo uma coisa só: sentimento e melodia. Construção indissociável. A mais nova composição de Jobim. Que nunca veio a ser divulgada.

Era Copacabana, o sabor da paixão, o café em Ipanema, um raio de sol tocando a pele, o piano levando as águas de março... Tudo dentro da moça bordada de flor, do bolero, dos anos dourados... Retratado na fotografia, nos versos banais, nas afobações. Em juras nunca ditas, confissões declaradas no gravador de fita cassete.

Um fim de semana, um chopp gelado, andar pela praia até o Leblon... Cantar a vida, anotando cada acorde num rascunho bem limpo, pra mais tarde escrever uma canção...
Uma canção falando de amor, de sede de vida, de saudade do mar, de bossa nova.



Quando ela acordou, a vitrola ligada já não cantava nenhuma nota. O céu não era mais mistura de aquarela. Não havia mais calçadão, nem piano, nem o silêncio da poesia que não precisa ser declamada. Era a mesma vida de antes. A mesma rotina metodicamente controlada. A mesma mesmice insossa.

Então ela começou a sussurar uma canção baixinho. Não sentia mais falta das rodinhas. Ela descobriu. Não sei o que ela encontrou em seu sonho de bossa nova. Mas seja lá o que foi, colocou um sorriso no rosto dela, e um raio de sol em seus cabelos.

E, a partir de então, todo dia era como aquela manhã caminhando até o Leblon. Sentir a vida entrando em você como a luz do sol ficando mais forte, mais descabida, desinibida.

Um querência sem fim de ser feliz.

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