13 de janeiro de 2012

Outra coisa - parte III (final?)

Hoje eu paro e penso que eu devia ter ficado lá. Mas era triste olhar para você a me pedir o que não conseguia dar.
Entao fechei os olhos e mergulhei dentro de mim, onde pensei que você não podia me achar. Mal sabia eu que era lá onde você morava, crescia, vivia, me vigiava.
De lá de dentro sua voz ficou apenas mais forte, mais vibrante. Comecei a acreditar que estava ficando louca, e nunca ouvi você discordar. Então acabei pensando: E por que não? Isso explicaria tudo... As vozes, os esquecimentos, a tristeza sem fim. Estou louca. Sou louca. Isso me ajuda a me perdoar também. A bem da verdade, nem preciso me perdoar. Loucos são loucos, já estão pre-desculpados antes de qualquer ato falho.
Fiquei mais conformada. Comecei a passear nas janelas da mente, vendo uns retratos antigos de mim mesma. Vez ou outra a sombra de você vinha, mas eu pensava: Estou louca, estou cansada... Não posso te ajudar.
E você parecia entender. Respeitar. Parou de me pedir, parou de repetir a frase que me dava tanto medo. Não, você não dizia mais. Mas você me olhava. E seus olhos diziam. Então eu não queria olhar pra você. Então viajar para dentro de mim foi ficando cada vez mais confuso, porque fechava os olhos mais uma vez para fugir dos seus olhos e encontrava - ou me perdia -  cada vez mais dentro de mim. Me assustava.
E então veio você falando de novo. E a dor no peito começou de novo. E o frio veio de novo. E o medo. E a outra coisa... Aquela coisa. De repente estava na minha frente. Clara, estonteante, luminosa, como se nunca estivesse saido dali, nunca tivesse sido apagada. Nunca tivesse sido esquecida.
Não pude contempla-la por cinco minutos, ou cinco anos, não tenho nenhuma nocão do tempo que apenas passei ali, tentando fugir do que se derramava em minha frente.
Doeu ficar com você. Doeu me sentir fraca o suficiente, imatura, insegura. Doeu. Doeu lidar com meus erros tão de perto, com seu julgamento de mim. Com sua falta de compreensão, de perdão, de amor.
Hoje eu teria feito diferente. Ou não. Eu teria ficado. Ou não. Eu teria te amado. Ou não. Eu nunca vou saber porque me neguei a outra coisa. Me neguei a chance de me confrontar. De me aceitar. De não fugir de mim mesma. De usar as exatas palavras, os exatos gestos e a exata entonação que meu coração pedia. De não me esconder de mim mesma. A outra coisa que na verdade era a minha coisa. Era quem eu sempre quis ser. Cometi suicídio sem morrer. Apenas matei. Homicídio então. Hoje volto e me encontro e não sei se sou eu ou se sou ela. Ou as duas. Ou nenhuma. Não sei mais o que faz sentido. Sei que eu acho que nunca deveria de fugido. Eu deveria ter ficado. E tentado outra coisa.



Em vez de tentar escapar de certas lembranças, o melhor é mergulhar nelas e voltar à tona com menos desespero e mais sabedoria.
Martha Medeiros

Outra coisa - II

Foi um caminho longo até aqui. Eu quis acreditar que seria mais fácil assim. A vida ia seguir menos turbulenta, menos chorosa, menos dolorida. Foi escolha minha. Como num livro mal escrito de que nao gostei um pouco, e como menina mimada, voltei e apaguei cada frase que eu nao concordava, que eu nao queria.
Hoje olho meu passado como todos os pedacos faltando e não consigo me lembrar exatamente o que perdi. Sempre tive essa amargura, esse jeito triste, esse ar sereno. Mas tinha algo mais. Tinha alguma coisa que eu quis perder, que eu quis apagar. Por alguma estranha razão que não consigo me lembrar. E é essa coisa que te faz falta. Que eu te neguei, que eu te roubei. A lembrança daquilo que eu nao quis te dar, pra te proteger, pra te salvar.
Nao sei se me culpo, ou se me agradeço. Não sei o que era. Me subverto. Me calo, silencio perante teu grito.
-Eu quero outra coisa.
-Mas você tem tudo. Está tudo aqui, a vida calma, o sossego, a praia, os amigos, o trabalho, o livro na varanda.
-Eu ainda quero outra coisa.
-Mas eu não lembro o que eu posso te dar. Não sei o que voce ainda pode querer.
-Isso não me faz querer menos.
-Você então me odeia por não saber...
-Não te culpo. Não sei seus motivos, mas sei de voce o suficiente para não te culpar. Apenas continuo querendo a outra coisa que você tirou de mim.
-Eu tenho que lembrar.
-Eu sei.
-Eu vou sentar aqui, na beira do fogo. Mas não sei se vou conseguir. Eu não sei se eu quero lembrar.
- Eu apenas sei que você não pode escolher o que tirar da minha vida. Eu quero outra coisa.