23 de maio de 2010

Vida alheia

Não há fim, tampouco princípio, 
Não há certezas nem dúvidas
Nem ambiguidades numa existência em plano cartesiano.
Somos apenas integrados e derivados, 
tendendo todos os dias
aos limites de nossa paciência.

Não existe igualdade,
não existe sofrimento,
não existe dor.

Tudo é relativo, inclusive a relatividade.
Não me arrependo de quase nada, e ainda assim,
quando perdão eu peço, dizem lá:

"Lá vai o homem se seis moedas e duas tristezas"! 

Imploro então humildemente,
Deixem em paz minha existência.
De que vos importam minhas moedas???
Deixem quietas minhas supostas tristezas.

Carta ao meu amor

Meu amor,

Vim te chamar hoje para ires embora comigo. Para apenas mais uma vez, só por mais um dia, podermos ser só você e eu, no lugar de sonhos e cores que criei para te levar no dia em que você voltar.
Se tivessemos mais um dia, se mais uma chance nos fosse concedida,  um dia para você e eu somente, eu iria gastar todo ele com as pequenas coisas. Nossas pequenas coisas, as monotonias nossas de todos os dias, as coisas que mais me fazem falta. Eu iria te levar para o parque de cerejeiras floridas de outono, iria sentir o perfume da flor branca presa no seu cabelo despenteado pelo vento, enquanto remávamos no lago de águas plácidas lendo a poesia que você mais gosta.
Iria te dar um sorvete com calda de morango, como os morangos do seu nariz, e ficaríamos deitados na grama vendo o sol se pôr, enquanto você cantava desafinando as nossas velhas canções. Iria passar o dia todo assim, olhando você, tocando você, em cada pequena coisa.
Se me fosse concedido mais um dia só com você, tocaria de novo teu rosto como em tempos antigos, até cada um dos teus traços ficarem eternizados na minha memória, até eu poder te ver ao fechar os olhos. Iria prestar meticulosa atenção a cada um dos teus sorrisos, das tuas palavras, os seus olhos e seu corpo. Ficaria ali contigo cada segundo do dia, e quando visse você adormecer, continuaria ali, para poder eu também adormecer em teus braços pela última vez.

Ah, meu amor... Quanta falta pode caber num coração? Quanto mais de saudade ainda se pode sentir? Meu coração que bate unicamente por você agora já tem um compasso mais desacelerado, mais doído, mas solitário.

"Saudade é solidão acompanhada,
é quando o amor ainda não foi embora,
mas o amado já... "

Lembro com carinho da tua mão quente repousando na minha, e da tua cabeça cansada reclinada em meu peito. Lembro do teu riso sem motivo, da tua respiração morna, do teu cheiro bom de menta com alecrim.
Lembro de como eu me sentia inseguro, de como eu tinha medo de nós, de como a simples ideia de me separar de ti me causava uma dor lancinante na alma.
Lembro da primeira vez que te vi, e lembro da primeira vez que te beijei. Foi como me jogar da mais alta montanha num abismo que eu não podia ver onde ia acabar. Foi como mergulhar num mar sem fim. Foi como me sentir enfim vivo pela primeira vez. Do que você se lembra, meu amor? Lembro do teu silêncio que sempre me torturava, e de como eu nunca sabia o que dizer quando via você chorar. Para onde elas vão, todas as coisas que nós pensamos e sentimos mas não dizemos?
Meu mais doce amor, como eu queria ter mais uma chance de poder te contar todas estas coisas que eu nunca disse a você, estas coisas que eu preciso que você saiba... Que eu sempre amei você, com um amor tão grande que vive mesmo após você ter ido.

Eu gostaria de poder dizer a você que eu faria diferente, que se eu tivesse mais um dia eu faria tudo certo. Mas eu sei que isto não é verdade. Eu cometeria todos os mesmos erros. Porque foi você mesmo que me ensinou que quando erramos é na maior das tentativas de não errar.
Por você e com você eu faria tudo de novo. Cometeria os mesmos erros, exceto um... eu não diria adeus.

"Saudade é não saber. Não saber o que fazer com os dias que ficaram mais compridos, não saber como encontrar tarefas que lhe cessem o pensamento, não saber como frear as lágrimas diante de uma música, não saber como vencer a dor de um silêncio que nada preenche."

8 de maio de 2010

As mulheres de Chico

Caro Francisco,

Quando haverás de te recordar de mim, e com a tua graça hás de me fazer cantada enfim, entre sons, tons, acordes e refrões, uma das tuas meninas, presa às notas da tua canção?
Por que não geraste a mim também, junto com as outras? Por que não me concedes existir em uma canção? Imagino que seja assim a vida tão mais leve, tão mais doce, tão mais buarque...
Viver cantada como uma moça, ainda que triste, mas capaz de dançar no sétimo céu. Ser de louça, ser de éter, ser loucura, ser cenário... Poder assim não andar mais com os pés no chão, esse chão tão duro quanto as cordas do teu bandolim.
Queria eu ser a moça do teu sonho, mas a outra deste o privilégio de morar no lugar onde depositaste o bazar de sonhos extraviados. Queria eu ser Iolanda, Januária, Iracema ou Joana Francesa... Qualquer uma delas, que me importa o nome, se és tu que me vais dar a vida entre sustenidos e bemóis?
Ah, meu amado Francisco, por que nunca olhas para mim? Nem um destino menos dignofoste capaz me dar, como ser a mulher de cada porto, de quem as pedras do cais vivem a rir, a deboxar; ou ainda aquela outra que leva a vida entre bofetões e cusparadas, a quem todos na cidade já puderam namorar; ou ainda atravessar o oceano e morar em Amsterdan, viver de compra, de venda e de trocas de pernas. A qualquer uma destas dedicastes mais acordes que a mim... Para mim não olhas, em mim não pensas, mas por que?
Por que não me fizeste uma mulher inesquecível, para a qual não haverá outro dia depois de amanhã? Eu podia ser a noiva, toda descuidada, que dorme de janela aberta para que todo marmanjo da cidade no meu quarto queira entrar...
Por favor, Francisco, ainda há tempo! Faz de mim uma de tuas Ritas, uma assim capaz de calar qualquer violão, de deixar todo homem sentado no chão, chorando planos e enganos, indo embora levando a vida dele na palma da mão.
Por que não me inventas agora? Ainda podes me salvar, Francisco. Fecha os olhos e imagina-me. A ti, muito isso não custará. Qualquer coisa te pode inspirar, qualquer madrugada de vinho, qualquer suspiro de mulher desenganada, qualquer pedra atirada na calçada.
Faz de mim uma mulher diferente, que já não se conheça mais... Uma altamente cotada na bolsa de amores, não uma moça fria ao portador.
Faz de mim uma Carolina de olhos fundos, que guarde nos olhos toda a dor de todo esse mundo...
Ah, Francisco, sei que isso não te custa, que fazes isso entre um gole e outro de café. Faz-me uma das tuas, uma filha de Francisco, ou amante, ou irmã, ou divina dama com quem tu queiras dançar.
Quero apenas ser tua nota e teu tom. Pertencer ao teu mundo, mesmo que nem sempre dês às tuas mulheres um amor ou um tanto de felicidade.

És mau, Franscisco, não tens pena das mulheres que concebes, filhas tuas, todas elas. Mas muito menos pena tens de mim, que não me fazes cantar, que não me dás teus acordes, que não me dás nada.
Quando te inclinares para mim e a inspiração te alcançar, não importa como tu me vás cantar.  Anota meus traços em teu caderninho, inundas a ti de tudo que há em mim, e declama minha vida, cria-me no teu mundo mesmo que eu leve a vida a lavar chão numa casa de chá. Não me importa que eu seja heroína, ou efêmera ou eterna num paradoxo musical.
Eu quero ser somente tua imaginação numa melodia sublime, e vagar para todo sempre entre os versos de um samba-canção, ou numa balada de amor piegas sussurada em algum bar no ouvido de quem se ama.

Vê se não demoras, Chico.

Desesperadamente,


Eu.

Entre vogais e consoantes

O fato era que X não conseguia parar de escrever e Y não conseguia parar de ler o que X escrevia. Era como uma dependência química; subordinações e coordenações, por vezes mistas, de letras e números, sinais gráficos e pontuações. Parecia mesmo uma doença rara, talvez nunca dantes vista ou pesquisada.
Tratava-se de um caso crítico de necessidade absoluta de outrem, ou melhor, dos escritos de outrem. Não tinha o mesmo efeito se o Y fosse exposto a sons, a gestos, nada disso era o mesmo que colocá-lo frente ao que X havia escrito.
E quando, por cansaço ou ausência ou falha de ideias, o X recostava a caneta num canto e parava de escrever, os sintomas de Y ficavam mais aguçados, entre suadeiras, tremores, vertigens e alucinações. Sabendo disto, X sentia-se portanto obrigado a sempre ter a caneta em punho, na busca incessante de manter o equilibrio de Y.
X era bom, não queria ver Y sofrer. Y era bom, precisava de X para viver.
Era um caso clássico de dependência mútua e exclusiva. Eles se entendiam nas entrelinhas. Tudo que era dito, era imediatamente compreendido, tal o grau de cumplicidade existente entre os dois.
Desde que tenho notícia, e já faz muito tempo, X escreve todos os dias, sobre qualquer coisa, o que lhe vem à cabeça, pensando apenas se Y lerá aqueles ditos, o que achará, se gostará.
E Y, postado ao seu lado desde que tenho memória, lendo cada letra à medida em que ela pousa no papel para ali repousar, vai sussurando as palavras nascentes, numa semi-adoração das letras de X, como se tudo que fosse dito valesse a pena apenas pelo fato de ser dito.
Incrível é que a leitura de Y nunca atrapalha o raciocínio de X. Nunca se cansam um do outro. Por vezes Y dorme, cansado após milhares de vogais e consoantes, e X, que se sabe maior e mais forte, aproveita esses momentos para preparar mais um belo soneto para quando Y acordar.
Os vizinhos olham com suspeita para os dois, como que recriminando aquela homogeneidade de seres. Pobres coitados, talvez nunca entendam a necessidade absoluta que se cria quando se ama alguma coisa.

[Y por vezes nem se dá conta de alguns textos de X. Os mais belos, os mais secretos estão escondidos por X, prontos para serem lidos na hora certa, se ela chegar].

4 de maio de 2010

Canções de guerra

E, diga aí, quem diria... Chegamos ao final de mais um dia. Mais um dia que chega ao fim, ou chegamos nós ao fim, ao fim de nós?
Explique de onde vem os gritos, de onde vem o medo, para onde foi a calma, esse choro que te cerca, as cercas ao redor de cada um de nós.
Quem plantou as mudas dos muros de concreto, hoje grandes árvores de Berlim? Eu vejo novas Alemanhas, novas Coréias morando frente a frente, separadas por um corredor.

- Esqueci de dar bom dia, esqueci o bom do dia, não me importa mais quem é bom, o bom é o bom pra mim, e enquanto for assim não vai ser bom para nenhum de nós.


"Nas grandes cidades de um país tão violento
Os muros e as grades nos protegem de quase tudo
Mas o quase tudo quase sempre é quase nada
E nada nos protege de uma vida sem sentido
Um dia super, uma noite super, uma vida superficial
Entre as sombras, entre as sobras da nossa escassez"

2 de maio de 2010

O vomitador de homens

Agora que estás aqui, não tens mais como fugir. Não há onde se esconder, não há o que fazer, porque mesmo que tudo que venha de ti se esconda entre tenebrosas brumas para toda a gente, para mim não passas de uma lagoa de águas transparentes. Vejo por teus olhos o que mais queres me esconder.  E já que estamos aqui, sentados em frente à planície onde deságuam os sonhos esquecidos e as realidades ora mortas, aproveitemos a areia que nos resta na ampulheta da vida para que possas enfim decidir por aceitar ou negar a verdade que te apresento. Afinal não sabes se amanhã o sol vai nascer pra ti ou para qualquer um. Somos vítimas de vítimas de vítimas e vítimas. És apenas um homem que vomita homens após engolir sonhos. Sonhos que colhes naquele jardim de flores que plantei para ti, e que digeres um a um, com cada pétala criando um braço, uma perna, um olho ou um coração.
Agora que estás aqui, não tens como te esquivar. A engrenagem da vida está a girar, e é do teu sangue que ela se alimenta. Sempre que se ganha uma verdade, se perde outra. Sempre que alguém sobe na vida, alguém desce, em contrapartida. É o equilíbrio do Universo, a homeostasia do sistema que flui em direção a justaposição de todas as coisas.
Estou bem aqui, espreitando todas as tuas decisões, esperando para ver qual lado haverás de escolher. Prestas atenção que hoje, ao pisar o chão, podes estar colocando teus pés no céu, uma vez que tudo é variável, nada é imutável, e todas as coisas são uma coisa só, filhas da mesma mãe, da mesma substância única formadora de tudo que há e pode haver.
Não te assustes, tua missão não é maior que a de qualquer outro. Apenas senta, respira e espera pacientemente pela hora em que deves dar a resposta. E só então quebras esse silêncio que nos cerca, e pronuncies a sentença que te condena ou te redime.
E depois esquece tudo, como se eu, esse lugar ou essas palavras nunca tivessem sequer existido. E vais para o outro lado, na outra ponta da corda, onde os contornos da vida são mais complacentes, e onde vais passar teus dias fazendo coisas impossíveis se tornarem reais.

Estrela-cadente

Ah...
Deve ser
tristeza o que deu na estrela
ao te ver sofrer.

E então
foi que eu vi a estrela brilhar lá no céu
pra chamar tua atenção.
[e você nem viu]

Ah...
Deve ser
por você não sorrir
que a estrela se jogou do céu
ao te ver partir.

E então
foi que eu vi a estrela tristonha,
cadente do céu
implorando por você aqui.
[mas você não quis]

- Hoje fiz um pedido para acender uma estrela no céu cada vez que você sorrir -

1 de maio de 2010

...Do silêncio dos dedos

E eu teria mil coisas a dizer hoje, uma por uma, vomitadas todas após esse longo período de abstinência de mim mesma, no qual me polpei de topar comigo nas vielas desertas da imensa galáxia de dentro de cada um de nós..
Mas desaprendi a escrever noite passada, e quando me dei conta disso, vi o desespero entrando ela porta da frente, sentando na minha mesa e pedindo um gole do meu café já frio.
E sem conseguir juntar a letras de uma forma compreensível no papel colocado à minha frente, fui enchendo a lixeira com toda uma resma de frustrações literárias.
Queria contar o que vi ao andar pelo mundo, contar tudo para as linhas pautadas, meticulosamente arrumadas à espera da minha prosa. Tanto a dizer...
Na minha loucura pulei uma linha, a maior de todas, um Equador de linha.
Do lado de lá, era tudo mais ou menos como cá, mas o oposto do que éramos e fomos e seremos nós.
Do lado de lá era tudo ao contrário.
E do lado de lá eu não sabia quem eu era.
Mas isso eu tinha esquecido do lado de cá, quando esqueci como se faziamagia ao juntar as letras.