24 de fevereiro de 2010

Eu só queria

Eu só queria, por um instante, curto ou insipiente que fosse, ter a competência plena de expressar o quanto te amo.
Mas sou amante incompleta e imperfeita, e com isso assumo as consequências da minha incapacidade transeunte de expressar verbalmente o que tenho por dentro, uma limitante assombração que lapida uma alma em transição, em busca de algo que ainda não sei o que.
Queria poder falar abertamente da minha vontade de deitar ao teu lado e esperar a noite encerrar a conversa num sono sem fim até o amanhecer, depois de um café quente numa rede na varanda. E ficar assim, e nunca mais levantar, e te amar pra sempre, e casar contigo, e te ver velhinho, e te ouvir cantando as velhas canções que não vão mais tocar nas rádios de um dia.
Queria dizer que te queria para sempre assim, para sempre junto de mim, dizer que te amo, que te quero todas as horas, todos os dias, que quero contigo todas as primaveras, e também todos os secos e infinitos invernos. Queria dizer que já não me imagino sem você. Queria dizer que a simples ideia de passar por ti como se não te conhecesse é um tormento que me assombra.
Queria dizer que meus versos e flores são minha forma infantil e rasa de te amar, quando comparadas a profundidade de tudo que tens me dado. Mas meu amor por ti é tudo que tenho, e é tudo que te dou, integralmente, sem filtros. Lamentavelmente talvez não seja suficiente... Às vezes sinto que vou de trem e tu vais de avião. Como poderemos nos encontrar? Tem vezes que a gente se sente tão só...
Essa saudade de você se repete em mim todos os dias. Virei uma monótona reprise. Numa urgente vontade de você.
Minha incompetente forma de te amar me faz querer tudo sem saber dizer. Mas eu quero. Quero assim você em doses homeopáticas, paulatinas, como se fosse a cura para um grande mal que me acomete: Essa louca dependência de você.

Como ouvi você dizer uma vez, desculpe a rendição, às vezes não sabemos como fazê-la, mas tem dias que elas são mais que necessárias.

19 de fevereiro de 2010

Praga de dedo podre

Desde que nasceu, ele já não sabia escolher.
Escolheu o lado errado pra sair do útero, e deu com os pés empurrando uma vagina mal dilatada, incapaz de permitir passagem daquela forma inusitada à natureza.
Enfim colocado à força do lado de fora, escolheu o peito esquerdo da mãe para se alimentar, logo o esquerdo, mais murcho, mais flácido, menos eficiente.
Escolheu ser canhoto, e nunca achouuma sala de aula que tivesse banca de canhoto para ele utilizar.
E assim foi por toda a vida. Escolheu o pior colégio, os piores "amigos", os piores livros para ler, as piores mulheres para namorar.
O infeliz que não sabia escolher. Errava tudo. Os conhecidos diziam que ele tinha o dedo pobre, coitado. O que tocava, não prestava.
Escolheu nomes horríveis para o filho que teve com a mulher que escolheu por esposa e que lhe deixou um mês após o nascimento da criança.
Ficou ele e o filho. E o filho cresceu com medo que o dedo podre fosse hereditário. Porque praga boa passa de geração em geração.
Escolheu torcer para o o time da cidade vizinha, e nunca viu um título em toda sua vida no Estadual. Foi o campeão dos vice-campeões.
Era um perdedor daqueles natos, não criados, não modelados. Natos. E tão acostumado a perder estava o coitado, que nem desespero tinha mais. Se dava errado, ele dizia: Já era esperado. E sempre dava. Errado, sempre dava.
Então ele morreu. Se matou. Escolheu o dia de morrer, como o último fato memorável, algo que ia ser lembrado. E morreu errado. Morreu no último dia do ano, no último segundo antes dos fogos, com um tiro na cabeça. Um tiro que ninguém ouviu. E ninguém foi pro enterro do pobre, afinal era Ano Novo, ninguém ia perder o dia de ressaca para enterrar o cara que não sabia escolher.

18 de fevereiro de 2010

Carnavais

O barulho ensurdecedor foi subindo a rua. Uma a uma, as pessoas iam se juntando, formando a multidao frenetica que a plenos pulmoes cantava as velhas marchinhas. O frevo ia assim tomando as velhas ladeiras, que agora cantavam para acordar a quem quer que fosse, em protesto aos outros 364 dias de silencio e abandono.
E essas ladeiras, e as esquinas, os becos, os muros antes silenciosos, se rendiam agora a magica irrecusavel de um maracatu de baque solto, de uma ciranda de roda, um coco, ou um frevo tao pernambucano quanto se pode ser em uma manha de sabado de carnaval olindense.
E a vida passava colorida num porta estandarte coberto de lantejoulas brilhantes, a frente de um bloco de desavisados, que nao se atentavam para o amanhecer da quarta-feira de cinzas. Nao se precisa dar conta do amanha enquanto se tem o hoje. E enquanto o hoje tiver o que queremos ter todos os dias.
Porem, em meio a algazarra, perdida em meio a folia alheia, enquanto o bloco ia passando, levando a multidao, ela, sentada na mesma janela de outros tantos carnavais, ouvia os cantos, via as cores, via o mundo, via o frenesi. Ela e sua vida de olhar os blocos passar. Ver passar.
E quando tudo parecia ser igual a todos os outros carnavais, eis que do meio da multidao se ergue uma mao, atirando para a janela da menina uma flor colhida as pressas num jardim no meio do caminho. A menina recebeu a flor, que prendeu no cabelo, e segurando a mao que ficara suspensa no ar, desceu da janela e foi pra ladeira. Com a flor no cabelo e o amor no coracao.

11 de fevereiro de 2010

Fazendo as malas

Amelie, quando a gente sabe que esta na hora de ir embora?
Minha pequena crianca, essa pergunta foi dificil... Tem horas que o coracao quer ficar e a mente manda a gente ir. Tem coisas que eu ainda nao aprendi. E, minha cara, existem coisas que levam uma vida inteira, e mesmo assim a gente nunca sabe.

Esquecimento

Sinto falta.
E a saudade é o pior castigo, é a mais cruel das penas, o mais injusto martírio.
Saudade é uma dor assim por dentro, não se sabe onde, parece que em tudo... Sinto-me um doente, um exilado, um excluído, um transviado. Sinto-me só.
É como uma peste, devastando o resto do mundo. Que me importa o resto do mundo? Não estás aqui, é tudo que importa. O resto é nada, o resto é pó.
"É como se me faltasse um dente da frente", humilhante, excrucitante. Devastador. É uma urgência que não pode ser sanada.
Saudade é o que resta depois de ter. Quando o ter passa a ser pretérito perfeito. Sem previsão de revisão de conjugação.
"Saudade é melhor que caminhar vazio". Discordo. Discordo. Caso fosses dizer isso perto de mim hoje, meu caro, urgentemente te corrigiria, e te faria dizer que as lembranças boas, essas sim são melhores que caminhar vazio. Mas não a saudade. Saudade não é lembrança. Saudade é miséria, é incapacidade. É nunca mais.
Sinto teu cheiro trazido pela brisa que entra pela janela entreaberta. Mas não há nenhuma janela, nem brisa, só cheiro. De onde vem o cheiro?
Acho que estou enlouquecendo. Agora moro na presença de tua ausência.

"Oh, pedaço de mim
Oh, metade afastada de mim
Leva o teu olhar
Que a saudade é o pior tormento
É pior do que o esquecimento
É pior do que se entrevar."

10 de fevereiro de 2010

Fantasma da noite escura

Ela passava ao lado do cemitério. Mas nunca entrava lá. E assim era, todos os dias, dia após dia, na sina eterna de evitar o inevitável.
A noite escura chegava, e a incrível atração que a chamava. Mas a alma perdida não queria se render. Custaria a se entregar. Custaria a declarar-se vencida. Tem fantasmas que simplesmente não aceitam a morte.
Às vezes, a noite, me sinto um fantasma perdido, vagando ébrio, sozinho, roubando flores de jardins de desconhecidos. As flores que não me dei em vida, e agora roubo morto para tentar sanar as dores de morrer e continuar vivendo.
E assim sigo, alma desolada, vencida, calada, usada, deturpada, estuprada;desabando por dentro e por fora; um fantasma sem reflexo, sem imagem, não visto, não sentido. Um fantasma sem sustos, um incapaz, um meliante, um transeunte, um qualquer entre tantos mais.
Uma delicada forma de se esquecer enquanto nos lembram todos os dias.

1 de fevereiro de 2010

Nau

A nau dos navegantes perdidos levanta as velas e se prepara para partir. Mas para onde seremos levados pela aragem que ora sopra?
Saberão os ventos nos confidenciar entre uma brisa e uma tempestade algo sobre nosso incerto destino? A longa espera por alguma resposta me deixa impaciente.
Imprecisas rotas que vão dar em lugar nenhum, ventos nórdicos, ou correntes do sul, por que vocês não me levam de uma vez? Não fazem de mim eterno peregrino, errante num caminho traçado para um só, um só denominador do que fui e do que ainda serei? Do que ainda nem sei...
Os navegantes perdidos cumprem seu fadário. Com faixas, e curativos, envoltos em panos e unguentos, limpam um convés enxarcado do sangue derramado. Uma questão de honra. Não vão entregar seu sangue ao mar, não vão lavar suas vestes imundas na água salgada daquele que detém as chaves do seu cárcere. Porque àquele que nos feriu, do nosso sangue não merece nenhuma gota.

Eis que reconheço que nada sei de ti. Estive aqui o tempo todo e nada sei. E, do alto da minha ignorância, paro atento a te observar uma vez mais. O que deixei escapar? Eis que é chegada a hora de te desvendar.

AuSêNcIa

Pintor de Ausências, destila teu pincel em meu coração, que aqui estou, nua como vim ao mundo, esperando por tua arte desde a eternidade.
Vem com tuas cores mais vivas, o que há de mais vibrante, pois a pintura que tenho está gasta, estragada, não tenho cores para iluminar o dia, nem mesmo sombras para permear a noite.
A lâmina fria do bisturi rasgou a carne vagarosamente, dolorosamente... Expôs o músculo, expôs a dor. Mas não houve gritos, não houve choro... Houve apenas o eco da lâmina sendo descartada após cumprir seu papel.
E o que hás de pintar, caro acuarelista?
Pintor de Ausências, pinta-me uma companhia, que esses dias assim sozinhos são longos como qual o quê.
Pinta-me um segredo, pinta-me um tesouro, pinta-me uma verdade que ainda não tenha sido dita. Uma verdade quase mentira.
Pintor de Ausências, vem que estou aqui de peito aberto, com o músculo exposto, as veias dissecadas, o sangue coagulando em contato com o ar. Não recuse minha matéria morta, vil artista. Não sejamos mais egoístas. Te dou a tela, me tragas depressa então as tintas, frescas, jovens, vivas... Me traga a vida. Transforme este pedaço de corpo em protesto exposto, em sutil agressão a tudo que não nos faz irmãos, meu caro retratista.
Pintor de Ausências, pinta logo este auto-retrato, transforme este quadro em espelho, em reflexo, tão igual quanto nossas máscaras, tão diferente quanto nossos reversos.
E assim, com minhas vísceeras pulsando involuntariamente no compasso de tuas tintas, teremos completado a obra para a qual fomos criados.
Uma obra sem explicação. Jamais entendida, jamais decifrada. Morreremos sem glórias, Pintor de ausências... Eu, obra nunca entendida, tu, artista jamais cortejado. Mas teremos cumprido nossa sina.
Nos explicar seria um insulto a auto-definição do meu corpo em exposição.


 Vem, vem depressa, vem sem medo, cumpre teu destino, e não esqueças, meu caro, de pintar-me boas suturas nas feridas da carne, que a hemorragia que hoje sofro pode me ser fatal.