Eu achava que eu ia sozinha. Sozinha mesmo, olhava para o lado e não via ninguém aqui. E caminhava com passo miúdo de quem se sabe esperada ansiosamente em lugar nenhum.
E era bom ir sozinha, porque é sempre mais fácil não dever nada a ninguém. Sem cobranças, atrasos e esquecimentos. O que eu devia era a mim mesma. A agenda estava com bastante espaço pra todas as coisas que eu queria fazer. E não havia ninguém também pra reclamar da música alta, da bagunça do meu quarto e da louça da noite anterior que eu ainda não lavara.
Sozinha.
Eu olhei em todos os cantos e não tinha visto ninguém.
Mas eu esquecera de olhar num canto, de olhar embaixo. Quando vi, lá estava ela. Morena, opaca, oposta, perseguidora. Uma sombra a me seguir. Do meu tamanho exato, com exatamente a minha roupa, exatamente a minha idade, exatamente eu do lado oposto. A sombra funcionou como um espelho, refletindo o que eu esquecera. A sombra negra refletindo os medos que tenho de mim mesmo. E que me afasta dos outros. A sombra negra me perguntando onde fica o depósito de sonhos perdidos. Eu não sabia.
Eu me esquecera. Porque um dia eu soubera. Mas não mais, hoje não mais.
E aquela imagem de mim refletindo o que eu esquecera me deu uma vontade imensa de vomitar. Uma angústia interna por me ver irrealizada numa sombra. A minha sombra.
Era a solidão de dentro de mim, empacotada em mim, que eu queria vomitar. Como a comida estragada que jantei noite passada. Mas desse prato eu vinha me alimentando por anos a fio. Um bolo de alimento estragado mal processado preso no meu estômago pedindo para sair.
O sol foi se pondo e a sombra crescendo. Foi ficando maior que eu. A calçada da rua já não lhe cabia mais. E esse enjoo a me consumir como o corpo de uma mulher grávida reagindo contra o feto parasita.
Eu queria cuspir no chão, mas a educação paramétrica não me permitia.
Eu queria gritar, e correr, e descolar aquela sombra dos meus pés. Mas eu não podia.
E o que eu podia?
Eu não estava mais só. A minha sombra me acompanhava. E me cobrava mais que qualquer outra companhia que eu pudesse conseguir.
Aquela sombra mesquinha refletindo minha feiúra. Ela parecia até mais bonita que eu. Mas como, se ela era eu?
Não, não era eu. Ela tinha o orgulho de se saber não desistente, e me passava isso na cara, rindo seu riso discreto com o canto da boca.
A minha sombra carrasca de mim agora me acompanhava. E me mentia, e me negava a vida que eu me impunha.
A minha sombra me torturava.
E o que eu fiz?
Me tranquei no quarto, apaguei a luz.
A vitória é do mais esperto, afinal. Fui dormir.
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