24 de abril de 2010

Mãe-poesia

A mãe-poesia que nos alimenta
com o leite das letras, das rimas,
da métrica e dos versos
de sonhos que um dia plantamos
para hoje ver nascer,
é a mesma mãe-poesia
que acolhe os poetas que nascem
e os homens que morrem
nos braços de uma palavra.

Que se há de fazer?

Que fique o dito pelo não dito, e tenho dito!
Hoje morro sem saber o que querias dizer.

Procura-se um escudeiro

Para os mais novos desocupados leitores, que se dignam gastar seu tempo a ler e reler as venturas e desventuras desse humilde cavaleiro errante de triste figura, bem menos nobre que seu antecessor Quixote, porém não menos altruísta e sonhador, e por isso tão digno quanto aquele da alcunha de cavaleiro e do auxílio de um fiel escudeiro, dedico estas parcas linhas.
Eu, cavaleiro errante por vocação, que me destino a consertar o mundo e dar justiça aos injustiçados... Eu, cavaleiro por amor às causas perdidas, seguindo o molde dos grandes cavaleiros andantes que conheço dos romances de cavalaria, sinto a necessidade da companhia de um escudeiro para colocar-se ao meu serviço oferecendo-me seus préstimos nessa valorosa jornada. 
Nessa dita, meu fiel escudeiro deve estar disposto a chuvas e ventos enfrentar,
encarar fantásticas empreitadas, 
curar feridas, 
destruir gigantes,
combater exércitos de guerreiros,
ajudar-me a conquistar o amor de Dulcinéia. 

Para mim não importa no entanto, se fores mouro, cristão velho ou cristão novo, judeu, escravo ou livre, a pureza do teu sangue pouco me importa. Importa que sigas Rocinante, de arma em punho, coração aberto, seja aonde for, e que cega e apaixonadamente defendas a justiça e amor.

Temos uma valorosa jornada a cumprir. Te ofereço em recompensa incríveis histórias para contares a teus netos, se os tiveres, porque não posso prometer-te longa vida pelos duros caminhos que havereis de enfrentar. 

Quais os medos do caminho? Quais as tempestades que já se fazem anunciar?
Vejo tão perto, tão próximo, terríveis dragões para dizimar. Sem escudeiro, como hei de fazer?
Como poderei a batalha vencer?
E vens dizer que alucino! Ouço loucos a me gritar que alucino! Loucos a me gritar que estou louco!
O mundo está louco! Quem enfrentará os moinhos? Mas não são moinhos! Vejo gigantes, por isso gigantes eles são!
Ateiem fogo, queimem os dragões! Não se vendam por tão pouco! Lutem, bravamente lutem! Enquanto houver esperança, lutem! A noite há de acabar! Quando o sol nascer, e nos deixar cegos, como enfretaremos o que hoje tememos? Ou virá a luz do sol clarear as nossas ideias hoje turvas e esmaecidas? Das tardes de escuridão, entre moinhos e fantasmas, entre loucos e dragões, me vejo só, e só não posso sair vencedor.
Preciso de um escudeiro, que nobremente venha se juntar a mim, por amor às causas perdidas.

B. ¿Es necedad amar?
R. No es gran prudencia.
B. Metafísico estáis.
R. Es que no como.
B. Quejaos al escudero.
R. No es bastante.
¿Cómo me he de quejar en mi dolencia,
Si el amo y escudero o mayordomo
Son tan rocines como Rocinante? (Lathrop19)

17 de abril de 2010

Nostalgias de sexta à noite

Os cabelos desleixadamente presos no topo da cabeça deixavam algumas mechas caírem distraídas sob o rosto casmurro. Os olhos fundos revelavam noites mal dormidas durante uma semana exaustiva de trabalho. Os dedos nervosos sincronizavam uma melodia ritmada na madeira da mesa, esperando pelo vinho que pedia para tomar sozinha, antes de voltar para casa onde o silêncio de um apartamento a esperava.
Foi quando olhou para o lado, e o viu, também sentado, numa mesa próxima.
Aparentemente era ele, apesar da barba bem feita e da camisa social, tão diferente de há tantos anos. Olhou e achou que o reconhecia, mas não tinha certeza. Alguma coisa a deixava em dúvida.
Talvez fosse a parca iluminação do restaurante. Talvez a distância... Talvez a falta de palavra, a falta de contato. Porque ficava difícil reconhecê-lo de olhos abertos. Perto dele eram sempre os olhos fechados, as mãos juntas, a cabeça placidamente recostada no ombro, as palavras se sucedendo. Nunca precisou de olhos para saber que era ele. E agora ficava estranhamente difícil realizar um reconhecimento baseado em sentidos tão pouco usados antes.
Não conseguia ver, dali de onde estava, se ele estava sozinho ou acompanhado. Engraçado, pensou agora, nunca ter tido notícias dele e de seus relacionamentos dos últimos tempos. Resolveu então acreditar que ele estava sozinho, porque também seria estranho imaginar alguém ouvindo suas velhas histórias, bebendo os mesmos drinks que ele pedia para ela. Era ruim imaginar alguém no lugar dela.
Começou a relembrar dos bons momentos, de risos felizes, de presentes trocados numa noite de Natal, sob as estrelas. Recortes de tudo que eles foram. Começou a se perguntar porque se separaram. Não conseguia lembrar. Aquela nostalgia a estava sufocando, e por várias vezes esteve a ponto de se levantar e chegar na mesa dele. Mas o que dizer? Após anos de silêncio, o que dizer? Os gostos possivelmente haviam mudado, as similaridades deviam estar dessincronizadas agora. Não tinha o que dizer. Era apenas uma velha história, recordações de uma menina apaixonada por seu primeiro namorado. Ela era tão inocente, tão novinha... Nem sabia ainda que profissão ia escolher. Pensava em ser advogada, tão diferente da medicina que escolhe anos depois. Não tinha porque ir lá.
Mas ela queria ir lá, ou melhor ainda, queria que ele viesse ali, e pedisse para lhe fazer companhia em nome dos velhos tempos. E podia quem sabe haver ainda algum acordo entre seus gostos, quem sabe?
Ela teve a impressão que sentia saudades. E foi aí que tomou a decisão
Chamou o garçom, o mesmo que a servia todos os dias que ali ia, e escreveu o bilhete.
Ele ia entender. Claro que ele ia entender. Ele prometera jamais esquecer, e que tipo de gente quebra promessas feitas à primeira namorada?
Esperou ansiosamente a resposta, com o mesmo nervosismo de há 15 anos atrás. A leve distonia disparou. O coração disparou. Era a adolescente de volta?
Quando o garçom se aproximou trazendo o guardanapo dobrado, seu coração estava já aos saltos. Olhou as parcas letras escritas, leu e releu o bilhete, e então tudo veio à tona. Lembrou porque o namoro não durara mais que duas semanas. Desilução ortográfico-amorosa. O cara simplesmente não conseguia escrever duas frases sem três erros ortográficos. E ela nunca suportara erros ortográficos. Muito menos em cartas de amor para ela. Eram suas prioridades: romantismo, respeito e ausência de erros ortográficos. Lembrou mais um motivo pelo qual seus olhos perto delee stavam sempre fechados.
Deu uma risada satisfeita então, de ver que não sentira saudades do bonito rapaz que estava na mesa ao lado. Não eram saudades dele. Eram saudades do que eles foram, de algo que não mais existia. E olhou para si mesma, com um pouco de vergonha, e viu que quem estava sentindo tudo aquilo também não era ela, mas alguém que ela fora há muito tempo, mas que também já tinha ido embora.
Bebericou seu último gole de vinho, pagou a conta, deixou uma gorjeta gorda para o garçom amigo de todas as sextas, e foi para casa fazer companhia ao silêncio de seu apartamento, rindo um pouco de si mesma e das desilusões ortográfico-amorosas.

12 de abril de 2010

Epitáfio de um passarinho

Já que eu vou morrer agora, tudo que eu disser se torna importante por consequência, e até aqueles que não admiram minhas palavras oua a forma de dizê-las vai parar para ouvi-las por respeito aos últimos cantos desse infeliz passarinho.
Quero dizer que partiram minhas asas, e isso é uma coisa que não se deve fazer a ninguém, pois me tiraram a chance de ver as coisas que me faziam viver, lá do alto. E o mundo ficou bem pequeno daqui de baixo. E as memórias antigas acabaram se apagando com o tempo, e tudo ficou reduzido às imagens ao redor desse poleiro na parede de uma casa ao redor de outras casas, numa floresta feia e cinza de cimento e concreto.
Então, por isso me rendo e morro, assim como um contrato que fiz em vida com a Dama Morte, para quando fosse chegada a hora.
Tudo que eu perdi de vista em vida, meus olhos encontrarão fechados. Porque os sonhos vão com a gente.
Se tenho medo? Medo tenho, embora não pareça. Mas que falta me faz a grande imensidão... E uma falta puxa outra. E fico querendo tudo, o todo, o mundo, fico assim querendo tudo, mudo, pois não sei mais cantar sem poder voar. Silêncio de divagações.
Sem asas, tive que aprender a romper a fronteira do espaço fragmentando pensamentos. Levo pouco. Mas trago muito.
Mas hoje cansei. Queria poder ir até o espaço orbital e poder repetir que a "Terra é Azul". Mas daqui de baixo tudo me parece bem cinza e quadriculado.
Infelizmente aprendi que por maior que seja o mundo, o que vivemos se limitou ao que conseguimos enxergar, especialmente quando víamos tudo e não enxergávamos nada.

Receita médica

Na farmácia de casa
procuro entre os frascos de
analgésico, antitérmico, antiinflamatório
onde eu coloquei o antitédio
para tardes de domingo enfadonhas
que se tem que passar em frente a TV.


Água e comprimido,
água e comprimido,
água e comprimido...

Um coração deprimido não tem
muitas outras opções.

Chuva

Vieram me perguntar por que os poeminhas bonitos não estavam mais pendurados no varal da janela...

Tive que explicar que a chuva do fim de semana molhou tudo, e ficou difícil de ler as letrinhas colocadas cuiadosamente nas linhas...
As entrelinhas então, ficou impossível!!!


.

11 de abril de 2010

1ª conjugação

Naquele dia ele chegou diferente do que costumava chegar.
Deu um boa tarde arrastado e um beijo muolhado, diferente do que costumava dar.
Não xingou a música alta e o livro entreaberto como costumava xingar.
Não reclamou a comida fria e a geladeira vazia como era comum reclamar.
Falou palavras doces e até poemas de amores, como nunca antes soubera declamar.
Entregou a mulher um embrulho machucado com um vestido decotado como ela nunca antes pôde usar.

Olhou a mulher por inteiro e a desejou diferente do que costumava desejar.
E entraram no quarto e trancaram a porta como nunca antes foi de precisar.
E dançaram uma valsa, e tocaram os corpos como nunca antes foi de se ousar.
Pegou-a pela cintura e a amou diferente do que era comum amar.
E fez juras de amor em meio a gemidos loucos que nunca antes soubera expressar.
E os vizinhos ouviram as declarações mais vexatórias, dignas de se envergonhar.
E a polícia veio acudir o chamado dos que não sabiam mais a quem chamar.
E levou preso o casal que contra o pudor e bom costume quis atentar.
E o silêncio fez pronto na rua, como era de se esperar.

{soou ruim no fim, essa monte de -ar, mas eu sempre gostei mais da primeira conjugação, então uma história contada assim era mais um desafio que uma tentativa de boa literatura.}

10 de abril de 2010

...Da dor

Vim com defeito de fábrica.
Sou ser humano que se importa
com aquilo que ninguém pára para olhar.

Há nestes[d]ia

A anestesia não cala meu medo.
Não muda minha intenção.

Há nestes dias de silêncio
atordoantes ruídos de arritmias.

A anestesia não me tirou a dor
de como é triste quando
a palavra esquece de mim.

Delírio de poesia

Tem dias que a poesia
[rebelde]
foge
pelas ruas
pelos becos
escuros
sem destino
corre
sofre
se esparrama
bebe
e cai,
trôpega.

Fica abandonada
na calçada
junto a lama
com versos
não ditos,
jogados
largados.

De longe,
eu olho
e vejo
que o dia levanta
e ela, como criança
está pronta
para abandonar a sarjeta
e recomeçar a cantar.

Então eu rio de leve,
admirada de como a vida
é bem como a poesia,
a gente pisca o olho,
o mundo gira
e a gente esquece
de quando estava caído
levanta, e
volta a sorrir.

6 de abril de 2010

Êxtase

Aprendeu a dança do tempo,
Fez silêncio quando o mundo desabava,
esperou a calmaria...
Esperou.
Fez morada atrás do pensamento,
onde moram os sonhos
e as fantasias.

Encontrou a paz de estar
bem consigo,
de estar bem com a vida.


Ficou traçando horizontes pela janela
para ver até onde podia se esticar...
Ficava assim soltando pequenos soprinhos de sonhos,
estourando bolhas de pensamento.

A certeza preenchendo cada centímetro do coração
A certeza de que a vida acerta seu rumo.
Que tudo sobrevive.
De que a gente vive. A gente aprende a viver.

A gente olha pra estrada,
enxerga os passos,
entende o que é só estrada,
e o que é lugar pra morar.

Este é o caminho,
é por onde você escolhe seguir,
e tem a vida, e tem a morte,
e tem bandido e tem mocinha,
tem pedra, tem sol, tem sal e tem mar.

A gente escolhe se vai ou se fica.
A gente escolhe o que for pra ficar.

Afinal, todos estamos a salvo de 'pra sempres' inadvertidamente interrompidos.

Descobre felicidades em lugares para onde antes nem olhávamos.
E deixa o coração assim em banho-maria, numa espera paciente
e vigilante pelo que vem na próxima esquina.
Das novas letras que colocaremos em nossas páginas brancas.

Bordamos sorriso nas nossas janelas a cada manhã.
É, a gente é feliz sem motivo, feliz por natureza...


Um prazer quase indecente em estar vivo...

3 de abril de 2010

A menina


Sabe aquela menina, sentada no balanço da árvore, na beira do lago? Aquela, de vestido florido, olhando pro céu? Aquela que está segurando a bolsa vermelha... A com o sorriso branco no rosto. É sim, é um bonito sorriso que ela tem... Eu conheci aquela menina.
E ela não foi sempre feliz assim. Ela descobriu sua felicidade dia desses, em horinhas de descuido. Ela achou a tal felicidade quando ela desistiu de procurar por ela. Aí não sei bem se ela a achou ou se foi achada por ela. O fato é que as duas se encontraram e agora não se largam mais. Ela cuida da felicidade como se fosse a coisa mais importante da vida, e por isso não desgruda dela nunca, e traz ela na bolsa vermelha, levando ela pra todo lugar.
A gente se conheceu naquela hora do dia que venta muito, e que o ar tem cheiro da poesia que exala das flores. E a gente conversou sobre o céu, que naquele dia estava mais azul do que em qualquer outro dia. E eu reparei no seu sorriso, e foi quando ela me disse que era porque tinha a felicidade dentro da bolsa vermelha.
Foi quando eu perguntei como uma coisa tão grande como a felicidade da menina podia caber dentro da bolsa. Porque, obviamente, pelo sorriso que ela trazia, felicidade ali não era coisa pouca. Mas foi aí que ela me ensinou que felicidade não é espaçosa, felicidade é uma coisinha simples, que a gente pode guardar na bolsa e levar a todo lugar, e quando preferir, dar um sopro nela, e aí ela infla, infla, fica bem grande, gigantesca, bem amostrada, e é nessas horas que a gente conta a todo mundo que é bem feliz. Nas outras horas, a gente leva ela na bolsa mesmo, pra ela ficar quentinha e acomodada pertinho do coração da gente.
E passamos o resto do dia conversando de como ela um dia encontrou a felicidade e agora vivia em meio a flores, versos, brisas, paz... E como sentar na praça e tomar um sorvete pode esconder as maiores alegrias. E como pode ser reconfortante contar segredos do dia aos passarinhos que vem cantar pra nós no fim do dia, em troca de migalhas de pão... Felicidade que exige tão pouco da vida.
Ela me disse que cansou de esperar felicidade que seria trazida pelos outros. Ela aprendeu que os outros não trazem felicidade. Felicidade ou está dentro da gente ou não está. Então ela sorria feliz pra todos que passavam, e desejava um bom dia desinteressado a quem quer que fosse. E parou de chorar quando pedia uma coisa a alguém e esse alguém lhe trazia exatamente o oposto. Ela não chorava mais. Ela apenas sorria, um sorriso sincero, e ia ela mesma buscar o que quer que fosse.
Fiquei muito entusiasmado com tudo aquilo, e pedi pra menina me mostrar a felicidade dentro da bolsa. Roguei, implorei até, mas não teve acordo. Ela apenas chegou perto do meu ouvido, e me sussurou o segredo que até hoje me faz brilhar os olhos quando lembro.
Não contarei então o que a menina carrega na bolsa, por nem eu saber o que é, nem lhes contarei a frase que me foi dita, porque ela foi dita pra mim.
Mas espero, senhores, que um dia, ao passearem por aquele lago, perto daquela árvore, encontrem aquela menina e o seu sorriso. Espero que ela os acerte com aqueles olhos de não ter mais fim. Espero, senhores, que um dia, vocês e eu possamos carregar na bolsa uma felicidade como a daquela menina.

1 de abril de 2010

Filho

Embora que em todos os teus primeiros passos
seja eu que te ensine
que te sustente
que te levante
e que te aplauda,

e embora teus pés ainda indóceis,
ainda débeis,
destreinados,
trêmulos
e machucados

Sejam por mim cuidados e endireitados,
e acalentados, e banhados.

Teus passos seguintes
serão sempre escolha tua.

De toda forma, eu vou ficar aqui
esperando que teus pés [que eu alfabetizei]
te tragam de volta para mim
numa tarde qualquer de domingo.