24 de abril de 2011

Lobas

São raras, verdadeiras espécimes em risco de extinção. Você não vê muitas pelas ruas, definitivamente não. É difícil cruzar com elas, mas se você tem a sorte (ou azar) de fazer isso, com certeza vai identificá-la através do contraste com todo o resto.
A grande maioria a teme, como um bicho arredio e selvagem que é.
Ela tem uma beleza incomum, fora dos padrões comumente admirados. Na verdade sua beleza é bem relativa. Ela é atípica. É ágil, rápida. Utiliza isso para capturar suas presas, que devora num instante de segundo.
É fiel,  protetora, vive e morre pela sua alcatéia. Com seu espírito arisco, tem seu pêlo em uma sedutora desordem, fascinante, com força e viço. Não se rende. Não se entrega. Não se ela não quiser. Conhece a vida na mata, os ciclos da vida, do nascer e do morrer. Sabe o prazer que se sconde em cada estação, se move com a leveza do vento, com a rapidez das gotas de chuva e a força das corredeiras. Conhece seus próprios momentos, e não luta contra o inevitável. Não subestima as forças, mas as estuda, aprende, e subjulga. Ela e sua sabedoria instintiva. Corre com os outros, brinca e uiva para a lua, e de repente cisma, e implica que quer ficar sozinha, correr pela mata sem ser atrapalhada ou ter que se preocupar com nada ou ninguém.
Ela encanta, talvez pelo seu mistério. Ela tem um não-sei-o-quê inexplicável, indecifrável. Eu mesmo já desisti de entender.
Só cruzei com uma dessas uma vez, mas é uma daquelas coisas que você não esquece. Nos olhamos, e foi como ver um turbilhão de sentimentos pelos seus olhos caninos. Ela passou rápido por mim, mas não sem causar estragos suficientes. Nunca soube onde ela morava; depois descobri que ela não tinha morada fixa, hoje aqui, amanhã ali e mais tarde em qualquer lugar. Seu lar era seu mundo, seu lugar era onde quer que ela pudesse descansar. Ela não criava laços, afeições. Tinha medo de se fixar e se tornar a caça ao invés do caçador. Temia ficar susceptível.
Como se eu não soubesse o quanto susceptível ela era. repente, estávamos lá, no meio do campo que ela adorava varar em corrida disparada, e quando eu dava por mim, eu não via mais o animal ameaçador, destruidor. Lá estava um filhotinho perdido, com medo, assustado, que eu punha no colo e esperava adormecer. Ora isso, ora aquilo. As várias faces que as lobas podem ter. Não é fácil lidar com animais selvagens. Eles são tudo, menos previsíveis.
Mas não fui enganado, ela nunca mentiu acerca disso, e vez ou outra, vendo que eu teimava em desacreditar do seu espírito que pertence ao mundo, da sua necessidade de liberdade, ela me lembrava da nossa instabilidade discretamente, da impossibilidade da união entre o homem e o animal selvagem. Como quando eu a queria ninar em meus braços, quando ela pareceia um filhote indefeso, e ela vinha me recordar seus instintos, com uma feroz baforrada no pescoço. Eu me assustava, olhava em volta, mas não conseguia ver além do filhote que eu botava para dormir. Nada ameaçador. Maseu sabia que ela estava ali dentro, a fera. 
Acabou que me acostumei com a presença dela, me acostumeti com o que ela não podia me dar. Não por muito tempo. E assim foi um dia em que ela me olhou e me deixou em seguida, com sua corrida que não pude alcançar. Sua correria de animal selvagem. O perfume que deixou era o suor da liberdade. Ela e suas presas, que me revelou quando sorriu antes de me dar as costas. Era mesmo um sorriso? Não sei, muita coisa não sei, ela me deixou com todas as peguntas e quase nenhuma resposta.
Hoje tenho arrepios às vezes, e penso que é ela, à espreita, me observando, me vigiando.
Ela não pode ser capturada, nem domesticada, nem subjulgada pelas suas regras. Ela tem seu próprio código. Ela é escorregadia, dissimulada, camufla-se em meio a mata e só se mostra a quem lhe aprouver.
Ela é o puro equilíbrio entre a natureza e a civilização, entre a bondade e maldade, a harmonia das canções do universo, o centro de todos as coisas, movendo-se com maestria de uma versão a outra dos sentimentos, das aversões da condição humana.
Humana sim, pois ela é a pura confusão de ser mulher. Selvagem.

Palavras cuspidas

Jogo as palavras como quem não sabe o que diz. E a veloacidade dos meus dedos definitivamente não acompanha a velocidade do meu racioncínio, e quero me matar por isso. Porque quando vou pegar uma ideia, corro atrás dela, e quando dou por mim, Paela já tem ido.
Amo as palavras, amo como quem ama um filho, e vários filhos, e com eles quer fazer moldes, e modelos, e fazê-las médicos, arquitetos, músicos. Mas meus filhos, que pari ingratos, eles insintem em fugir de mim, como infantes rebeldes que se rejeitam a aprender o alfabeto. Minhas palavras são adolescentes. Houve um tempo em que me dava tão bem com elas, mas hoje sinto que me escapam. Que de maneira nenhuma dizem o que quero dizer. Não consigo encontrar minhas palavras. De quem são essas que uso? Não são minhas. Roubei-as de alguém? Não me lembro, e isso me tortura. Não me lembrar, como posso não me lembrar? Como uma peça que minha razão começa a me pregar. Nunca gostei muito dela mesmo, e hoje em dia, a desprezo quase que totalmente. Não a minha, unicamente. Mas todas as razões do mundo, que conseguem ser tão simples, como se a vida fosse ou pudesse ser simples. Nada mais racional eu aprecio. Quero o sentir de novo, as emoções borbulhando em mim como as palavras nesses texto. Pela primeira vez em não sei quanto tempo me permiti cuspir as palavras de dentro de mim através dessa agonia que me consome. Agonia de não dizer. Eu quero gritar, mas ninguém aqui vai me ouvir gritar e isso vai parecer meio louco, louco para mim que serei a única a ouvir verdadeiramente o grito, e tenho medo de parecer louca para mim mesma. Se eu for louca, não acreditarei mais em mim, e se não acreditar em mim não terei mais nada, mais ninguém. Pareço atormentada. Talvez eu esteja. A pressa de vomitar esse discurso me faz engolir letras, e a necessidade perfeccionista de voltar  e corrigi-las, e o tempo perdido, tudo isso me alucina. O que estou fazendo?
Eu não sei, você sabe?
Isso faz sentido para você?
Eu quero a minha vida de volta. E o amor, e a paz, e a certeza de que as palavras não vão me abandonar.

Eu e os mares


Num coração feito bote sem remos, como um barco a deriva, olho para trás e penso que, após tantas viagens, em poucos lugares encontrei portos com os quais me tornei um só, que foram mais que uma noite de pouso, sem nomes ou lembranças. Procuro em vão lugares em que tenha abandonado minhas cordas após noites insólitas, tempestades e cruzadas para enfim me sentir em paz, em casa.
Foram dias inteiros a começar de novo, contanto os dias, as estrelas e as bússolas de constelações. Enfrentando os piratas com bandeiras flamejantes e sobrevivendo. Empunhando a espada com maestria para o que de fora me ameaçava. Mas fraquejando as pernas, temendo a morte, a morte causada por mim, gerada por minhas dores, os perigos que fazem parte do que sou, que ficam me avistando de tão perto, perigos que esolhi como minha tripulação, que estão a bordo, na proa.
Longe dos mares me perco com poucas palavras e muitos dilemas. No mar sou ventania, com velas içadas, a me sentir invadir pelo revés da corrente.
Faço-me mistério como segredos dos meus porões, sem tesouros, sem âncoras, sem cais.
Nunca me arrisquei de verdade no mar, eu acho. Nunca soltei as amarras totalmente, nunca naufraguei no batismo de mergulhos primeiros.
Talvez daí venha minha incompletude, por nunca ter cumprido meu destino de embarcação, de navegar por setes mares, oito, nove. De descobrir os novos mares. 
Enfrento a morte todos os dias para não morrer. Não quero morrer. Se morrer não quero, quero viver, pois. Mas viver é o que, senão morrer aos pouquinhos, devagarinho, de uma morte retardada, solitária, irresponsiva?
Quero aprender a mergulhar um dia deses. Não quero morrer sem aprender a mergulhar.

9 de abril de 2011

Repetições

E mais um dia como outro qualquer. Acordo cedo, levanto, pego o ônibus, trabalho, almoço minha marmita requentada, trabalho de novo, pego o caminho de casa, assisto o jornal e vou dormir.

Duas piruetas, um salto mortal, um duplo twist carpado, e me vejo sentada no sofá esperando o telefone tocar e me tirar da solidão. O que, sem nenhuma surpresa, nunca acontece.

Fico com a artrite reumática da alma, a asma brônquica dos discursos interrompidos, a gastrite doída dos dias e o fígado embargado das noites.

Fico com a fartura de horas, minutos e segundos abarrotados de nada.
Fico com o silêncio do cheiro dos meus passos, e das coisas que delicadamente, silenciosamente ou maliciosamente vou deixando para trás.
Fico com a brancura alva do vestido novo, comprado para o baile que eu nunca fui e para a valsa que eu nunca dancei.
Fico aqui porque ninguém me liga e eu não tenho a menor ideia de para onde ir.

Insônia

Os dias, mesmo desse jeito lânguido passam depressa, e para tudo que é a mais eterna modorna se arruma um jeito de se contornar. A gente telefona pra um amigo distante, faz uma visita não prevista ou vai ao cinma assistir uma matinê. O problema é quando chegam as noites. As temidas, intermináveis e irremediáveis noites.
As piores coisas podem ser ditas, pensadas e praticadas em noites de ócio. Só quem já passou por madrugadas em claro sabe do que eu estou falando. Não existe nada pior que ficar olhando o primeiro raio de sol varar pela janela para aproveitar e sair correndo para qualquer lugar longe das quatro paredes do quarto.
O quarto que virou um claustro, um cela, a maior das cadeias, encerrando a minha agonia pelo fim da escuridão.
De dor, de medo, de ansiedade, arrependimento e frustração é que as noites de insônia estão cheias. E aí não tem msn, livro, novela reprisada, filme no corujão ou sala de bate-papo que seja menos degradante para assumir a solidão.
E ainda tem o relógio açoitando as horas, cada vez mais devagar. Já desisti de olhá-lo, ele deve estar atrasado, não é possível que o tempo realmente esteja assim, a se arrastar.

E falam que não existe noite que resita pela manhã. Já que vocês dizem, eu não vejo a hora.

If I were a boy...

Eu a ouviria.

A primeira coisa certa a se fazer seria ouvir cada uma de suas palavras, por menores que fossem. Ouviria os suspiros também, pois saberia o quanto falam os suspiros.
Estaria lá, e seria atencioso sem ser pegajoso. Estaria sempre lá, quando ela precisasse e quando ela menos esperasse. E saberia deixá-la por um tempo se fosse preciso, mas nunca iria muito longe, estaria sempre por perto, com olhos, ouvidos e braços alerta.

Faria surpresas.

E diria o quanto ela está linda na camisa velha com o cabelo despenteado.
Não diria mentiras, nem a enganaria. Não prometeria amores eternos. Prometeria amores. Os maiores, os melhores, os inesquecíveis, enquanto durarem, enquanto forem pra ser.

Se eu fosse um garoto, eu entenderia o valor que tem o amor de uma mulher. Eu entenderia que ela precisa de algo além do que posso entender, e não ficaria com raiva por não poder alcançar a profundidade do sentimento. Calaria nas complexidades, nas inexplicabilidades e, principalmente, nas TPMs.

Eu não seria o que chamam de príncipe. Não seria perfeito, erraria, e machucaria, mas para cada sofrimento eu voltaria com uma rosa em mãos. Os olhos vermelhos de quem errou mas não queria errar.

Eu não seia nada mais que o homem ao lado de uma mulher. Para qualquer final.

Dia de chuva

Meu clima muda com o tempo.

Toda vez que chove
me da uma agonia por dentro
uma vontade de não sei o quê
que nunca consegui resolver.

E fico assim até a chuva passar.

Hoje a chuva não passou,
e fiquei o dia todo como quem
quer o que não quer
e vice-versa.