14 de junho de 2010

A Ela

Mandem-lhe este recado de tamanha urgência.
Digam-lhe que não irei, que hoje não irei
Que já não me é possível ir
Apesar de muito querer.
Que é grande meu penar,
mas hoje não posso ir.
Que hoje não a verei.
Que me é impossível lá chegar.
Digam a ela que hoje eu não posso ir.

Digam-lhe que há crianças morrendo de fome no caminho até ela.
E mulheres que choram os maridos que foram para a guerra.
E certos jovens apaixonados que foram abandonados
acometidos de amores impossíveis,
desencantados.

Digam a ela que existem milhares a consolar
e que com tanta tristeza eu não posso ir lá
Hoje não posso ir lá.
Hoje não posso ir lá.

Digam a ela que existem milhões de cadáveres a enterrar
e certas estrelas que insistem em se apagar
que existem muros pixados a limpar
e balas que foram perdidas que tenho que encontrar
antes que encontrem um outro antes de mim.

Digam que choro amargamente
por este dia único em que sentei aqui
e lamentei ser impossível ir encontrá-la.
Pois o céu está cinza da poeira das fornalhas
das vidas que se queimam em holocaustos suicídicos.

Digam a ela que tenho que ficar a postos
pronto para amar e socorrer e abrir os cárceres de mentes
voltado para todos os caminhos
onde quer que se precise
onde quer que se suspire
onde quer que haja dor,
onde quer que se morra
seja de ódio ou de amor.

Digam a ela que estou enxugando a poça de sangue da praça
com a roupa que eu acabara de alvejar
que já não tenho mais vestes limpas
mesmo que hoje eu pudesse ir com ela me encontrar.

Falem a ela, não a deixem me esperando
digam que o herói está preso,
e os acordes da canção foram roubados,
e os sinos de alegria foram desmontados
que já não há quem possa tocá-los.

Digam-lhe que meu dever é grande
que há fome e mentira
e desgraça e genocídio
espalhados em todos os lugares
e eu não posso cruzar os braços,
não posso ficar parado.
Sei que ela entederá que não posso ficar.

Por isso peçam-lhe paciência
peçam-lhe que não me esqueça
digam-lhe que volto logo que possível
aos seus braços
onde me sinto em paz.

Mas que agora não posso
mas que agora não devo
que hoje não a encontrarei
nos becos e ruas e vielas de costume
nas horas de lua alta
sob o canto de violões sem corda
e vozes embargadas.

Digam que sinto saudades,
que meu coração é só dela
que nunca a traí
nem jamais tive outra em meus pensamentos
ou em meu leito.
Que almejo por revê-la
tão logo quanto seja possível.
Digam a ela que carrego o peso do mundo nas costas
e honro o nome que ela me deu
e os ensinamentos que me prestou.

Digam a poesia que volto logo.
Mas que hoje é impossível.
Hoje não posso.
Que é grande meu penar,
mas hoje não posso ir.
Que hoje não a verei.
Que me é impossível lá chegar.
Digam a ela que hoje eu não posso ir.


*Uma homenagem a Drummond, num dia que temo possuir aquele mesmo sentimento do mundo.

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