8 de maio de 2010

Entre vogais e consoantes

O fato era que X não conseguia parar de escrever e Y não conseguia parar de ler o que X escrevia. Era como uma dependência química; subordinações e coordenações, por vezes mistas, de letras e números, sinais gráficos e pontuações. Parecia mesmo uma doença rara, talvez nunca dantes vista ou pesquisada.
Tratava-se de um caso crítico de necessidade absoluta de outrem, ou melhor, dos escritos de outrem. Não tinha o mesmo efeito se o Y fosse exposto a sons, a gestos, nada disso era o mesmo que colocá-lo frente ao que X havia escrito.
E quando, por cansaço ou ausência ou falha de ideias, o X recostava a caneta num canto e parava de escrever, os sintomas de Y ficavam mais aguçados, entre suadeiras, tremores, vertigens e alucinações. Sabendo disto, X sentia-se portanto obrigado a sempre ter a caneta em punho, na busca incessante de manter o equilibrio de Y.
X era bom, não queria ver Y sofrer. Y era bom, precisava de X para viver.
Era um caso clássico de dependência mútua e exclusiva. Eles se entendiam nas entrelinhas. Tudo que era dito, era imediatamente compreendido, tal o grau de cumplicidade existente entre os dois.
Desde que tenho notícia, e já faz muito tempo, X escreve todos os dias, sobre qualquer coisa, o que lhe vem à cabeça, pensando apenas se Y lerá aqueles ditos, o que achará, se gostará.
E Y, postado ao seu lado desde que tenho memória, lendo cada letra à medida em que ela pousa no papel para ali repousar, vai sussurando as palavras nascentes, numa semi-adoração das letras de X, como se tudo que fosse dito valesse a pena apenas pelo fato de ser dito.
Incrível é que a leitura de Y nunca atrapalha o raciocínio de X. Nunca se cansam um do outro. Por vezes Y dorme, cansado após milhares de vogais e consoantes, e X, que se sabe maior e mais forte, aproveita esses momentos para preparar mais um belo soneto para quando Y acordar.
Os vizinhos olham com suspeita para os dois, como que recriminando aquela homogeneidade de seres. Pobres coitados, talvez nunca entendam a necessidade absoluta que se cria quando se ama alguma coisa.

[Y por vezes nem se dá conta de alguns textos de X. Os mais belos, os mais secretos estão escondidos por X, prontos para serem lidos na hora certa, se ela chegar].

Um comentário:

Anônimo disse...

Só X é capaz de colocar brisas e flores em uma harmonia capaz de provocar em Y o que X sabe que provoca

Anônimo?