Pintor de Ausências, destila teu pincel em meu coração, que aqui estou, nua como vim ao mundo, esperando por tua arte desde a eternidade.
Vem com tuas cores mais vivas, o que há de mais vibrante, pois a pintura que tenho está gasta, estragada, não tenho cores para iluminar o dia, nem mesmo sombras para permear a noite.
A lâmina fria do bisturi rasgou a carne vagarosamente, dolorosamente... Expôs o músculo, expôs a dor. Mas não houve gritos, não houve choro... Houve apenas o eco da lâmina sendo descartada após cumprir seu papel.
E o que hás de pintar, caro acuarelista?
Pintor de Ausências, pinta-me uma companhia, que esses dias assim sozinhos são longos como qual o quê.
Pinta-me um segredo, pinta-me um tesouro, pinta-me uma verdade que ainda não tenha sido dita. Uma verdade quase mentira.
Pintor de Ausências, vem que estou aqui de peito aberto, com o músculo exposto, as veias dissecadas, o sangue coagulando em contato com o ar. Não recuse minha matéria morta, vil artista. Não sejamos mais egoístas. Te dou a tela, me tragas depressa então as tintas, frescas, jovens, vivas... Me traga a vida. Transforme este pedaço de corpo em protesto exposto, em sutil agressão a tudo que não nos faz irmãos, meu caro retratista.
Pintor de Ausências, pinta logo este auto-retrato, transforme este quadro em espelho, em reflexo, tão igual quanto nossas máscaras, tão diferente quanto nossos reversos.
E assim, com minhas vísceeras pulsando involuntariamente no compasso de tuas tintas, teremos completado a obra para a qual fomos criados.
Uma obra sem explicação. Jamais entendida, jamais decifrada. Morreremos sem glórias, Pintor de ausências... Eu, obra nunca entendida, tu, artista jamais cortejado. Mas teremos cumprido nossa sina.
Nos explicar seria um insulto a auto-definição do meu corpo em exposição.
Vem, vem depressa, vem sem medo, cumpre teu destino, e não esqueças, meu caro, de pintar-me boas suturas nas feridas da carne, que a hemorragia que hoje sofro pode me ser fatal.
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