10 de novembro de 2010

O velho da Rua 15

Nunca fez canções ou escreveu poemas, nem fez grandes discursos, ou escreveu linha alguma que pudesse ser posteriormente lida e comentada. Nem um ato último fez que lhe concedesse a dita de ser posteriormente lembrado, um simples comentário, um gesto ou uma dita que lhe fizesse memorável.
Era sujeito quieto, sem muitos amigos, de palavras poucas, de escrita atrapalhada, que entrava e saia sem se dar a notar. Vivia rindo sozinho pelos cantos, como o louco que muitos acreditavam que ele fosse. Estava sempre sozinho, e incrivelmente previsível, sempre sabíamos os lugares de lhe encontrar: na areia da Praça 15, perto de onde as crianças brincavam, com uns galhos riscando o chão, ou no canto mais escuro do bar, tomando seu gole de cachaça dividida consigo mesmo, ou na beira do lago do Passo da Várzea, lendo seu velho livro de capa marrom, ou com o olhar perdido em outra galáxia. Parecia sempre esperar algo, ou buscar algo muito além do que podíamos entender. Quase nunca falava com ninguém, e quando fazia isso, era rápido, instantâneo. Não era bom em contos e pilhérias. Todos sabiam que algum mistério o envolvia, como aquelas pessoas que sabemos que nasceram na época errada, no país errado, no planeta errado. Quase todos tinham pena dele e de suas esquisitices. Das suas roupas enxovalhadas, do seu mal trato consigo mesmo. Vivia sua vida de auto-exclusão, e todos o recriminavam por nunca ter tentado se aproximar, por se tão neurótico e auto-suficiente.
Morreu ontem, e nenhum de nós sabíamos o que dizer sobre ele ou sobre a vida dele. Não havia quem segurasse a alça do caixão pra subir a ladeira do cemitério, então após fazer isso, sentamos eu e cinco amigos no bar onde tantas vezes vimos o dito cujo no canto escuro, sozinho.
Estávamos lamentando uma vida tão malfazeja, quando o garçom se aproximou e disparou. Seu Luis? (enfim pude descobrir o nome dele) Viveu mais do que todos nós. Nunca quis ser grande, não. Não estava preocupado com o que achavam dele ou o que deixavam de achar. Era sozinho, gostava de ser sozinho. Queria ser ele mesmo. Todos os dias levantava e fazia o que ele sabia fazer de melhor. Desenterrava a cada manhã a criança que havia dentro dele e saia com ela pra brincar.

Palavras que ficaram martelando na minha cabeça todo o dia.

Um comentário:

João Gilberto Saraiva disse...

Muito bom, o velho e o texto, parabéns doutora, como sempre você continua afiada com as palavras.

Até mais.