8 de maio de 2010

As mulheres de Chico

Caro Francisco,

Quando haverás de te recordar de mim, e com a tua graça hás de me fazer cantada enfim, entre sons, tons, acordes e refrões, uma das tuas meninas, presa às notas da tua canção?
Por que não geraste a mim também, junto com as outras? Por que não me concedes existir em uma canção? Imagino que seja assim a vida tão mais leve, tão mais doce, tão mais buarque...
Viver cantada como uma moça, ainda que triste, mas capaz de dançar no sétimo céu. Ser de louça, ser de éter, ser loucura, ser cenário... Poder assim não andar mais com os pés no chão, esse chão tão duro quanto as cordas do teu bandolim.
Queria eu ser a moça do teu sonho, mas a outra deste o privilégio de morar no lugar onde depositaste o bazar de sonhos extraviados. Queria eu ser Iolanda, Januária, Iracema ou Joana Francesa... Qualquer uma delas, que me importa o nome, se és tu que me vais dar a vida entre sustenidos e bemóis?
Ah, meu amado Francisco, por que nunca olhas para mim? Nem um destino menos dignofoste capaz me dar, como ser a mulher de cada porto, de quem as pedras do cais vivem a rir, a deboxar; ou ainda aquela outra que leva a vida entre bofetões e cusparadas, a quem todos na cidade já puderam namorar; ou ainda atravessar o oceano e morar em Amsterdan, viver de compra, de venda e de trocas de pernas. A qualquer uma destas dedicastes mais acordes que a mim... Para mim não olhas, em mim não pensas, mas por que?
Por que não me fizeste uma mulher inesquecível, para a qual não haverá outro dia depois de amanhã? Eu podia ser a noiva, toda descuidada, que dorme de janela aberta para que todo marmanjo da cidade no meu quarto queira entrar...
Por favor, Francisco, ainda há tempo! Faz de mim uma de tuas Ritas, uma assim capaz de calar qualquer violão, de deixar todo homem sentado no chão, chorando planos e enganos, indo embora levando a vida dele na palma da mão.
Por que não me inventas agora? Ainda podes me salvar, Francisco. Fecha os olhos e imagina-me. A ti, muito isso não custará. Qualquer coisa te pode inspirar, qualquer madrugada de vinho, qualquer suspiro de mulher desenganada, qualquer pedra atirada na calçada.
Faz de mim uma mulher diferente, que já não se conheça mais... Uma altamente cotada na bolsa de amores, não uma moça fria ao portador.
Faz de mim uma Carolina de olhos fundos, que guarde nos olhos toda a dor de todo esse mundo...
Ah, Francisco, sei que isso não te custa, que fazes isso entre um gole e outro de café. Faz-me uma das tuas, uma filha de Francisco, ou amante, ou irmã, ou divina dama com quem tu queiras dançar.
Quero apenas ser tua nota e teu tom. Pertencer ao teu mundo, mesmo que nem sempre dês às tuas mulheres um amor ou um tanto de felicidade.

És mau, Franscisco, não tens pena das mulheres que concebes, filhas tuas, todas elas. Mas muito menos pena tens de mim, que não me fazes cantar, que não me dás teus acordes, que não me dás nada.
Quando te inclinares para mim e a inspiração te alcançar, não importa como tu me vás cantar.  Anota meus traços em teu caderninho, inundas a ti de tudo que há em mim, e declama minha vida, cria-me no teu mundo mesmo que eu leve a vida a lavar chão numa casa de chá. Não me importa que eu seja heroína, ou efêmera ou eterna num paradoxo musical.
Eu quero ser somente tua imaginação numa melodia sublime, e vagar para todo sempre entre os versos de um samba-canção, ou numa balada de amor piegas sussurada em algum bar no ouvido de quem se ama.

Vê se não demoras, Chico.

Desesperadamente,


Eu.

3 comentários:

GABRIEL, gustavo disse...

Até eu já cantei ser uma das mulheres de Francisco.

E olha que eu sou homem.

Mas, é um privilégio muito grande... praticamente inalcançável.

André Palhano disse...

Olá, Klécia!

Como encontrou meu humilde blog?! Saiba que é uma alegria imensa encontrar um comentário de alguém que não se conhece. Ainda mais quando se trata de um comentário tão bem feito e poético quanto o seu!

=)

Anônimo disse...

Ao primeiro coment:
Torna-se válido ressaltar que a repetição de temática é algo clássico no mundo literário e que essas não devem ser questionadas. Quem pensa que escreveu sobre algum tema que acredita ser inédito comete, na realidade, um erro bastante infantil. Para acreditar que seu tema é filho único faz-se necessário uma análise de tudo qua já fora escrito, para só então ter essa certeza... e como tal avaliação torna-se logicamente impossível, não vejo o problema de se usar motivos clássicos... nesse contexto, o grande mérito literário reside em conseguir escrever de forma peculiar sobre algo já falado.